25 de março de 2011

Polifonia Inebriante

Por Mariana do Vale Moura e Lara Lima Satler

Cidades, multidões, sujeitos, caos, fábricas, manequins, carros, trens... elementos que fazem o filme Um homem com uma câmera de Dziga Vertov (URSS, 1929). Tumm, pãaa, (corta a cena) pá, xiiii (o trem atravessa a tela) triiii, toooo, truuuuu, tictactictac, (cortes secos e seqüência rápida de cenas) tuctac, chichichipápápá, bláblúblí, peeeeee, píiiiiii, (fábricas a todo vapor).
O filme tem seus próprios sons. Sons que não são o da trilha sonora, afinal nem sabemos ao certo qual a trilha originalmente executada nas exibições do lançamento. Temos, portanto uma obra do cinema-mudo cuja exibição acontecia ao som de música ao vivo. Nas imagens, os músicos afinam seus instrumentos, as pessoas ocupam seus lugares, as cortinas se abrem, o espetáculo começa. São sons mentais que as imagens produzem, são imagens-sons, som como extensão da imagem, conseqüência do corte, da velocidade-fixidez, do ritmo, dos sentidos.

Essa polifonia de imagens, mais rápidas que lentas, ritmadas, aparentemente descontroladas, geram a sensação de ebulição e de que vão ultrapassar o limite da tela, atravessá-la, saltar no espectador. É como se o filme – mesmo visto sem áudio – ecoasse um pedido de “decifra-me!” aos ouvidos do espectador (espectador nós – e não – espectador eles, que fazem parte da mise-en-scène construída por Vertov, que filma o espetáculo em curso). Aliás, se algum desejo o homem com uma câmera tinha, certamente era o de descortinar os sons da cegueira cinematográfica de então. Aos poucos, os sons sentidos nas imagens são compreendidos, digeridos, por nós (e quem sabe por eles).

Seria um passeio polifônico? Passeio de um homem com uma câmera pela cidade, aliás, passeio de dois (ou três, é possível) homens com câmeras pelas cidades. Aquele (homem) que filma, mas que também é filmado, filmado por outro homem que filma, mas não está em cena. Confuso. Mas é assim. Vertov traz para a história do cinema, numa época que ainda não se falava em domínio do documentário, um filme que escancara a sua própria feitura, se assume em construção, apresenta a mise-en-scène, ou seja, evidencia-a em muitos momentos. Obra exemplar da mise-en-abyme.


Faz isso não só mostrando como foi feita a captação de determinadas imagens, quando filma - o homem com a câmera - filmando. Faz também, quando mostra o processo de montagem. Em seqüências, Vertov apresenta sua mulher montando o filme em curso, separando, cortando, numerando, colando frames. Para. O ritmo vai do frenesi das rotativas para a fixidez do frame estático: o jogo do movimento que insiste em nos iludir. Vemos um frame congelado com foco no rosto de uma criança, por instantes como uma fotografia afônica na tela. Depois um pedaço de película, nela esse mesmo rosto, mas em vários frames. Sobe o som: a criança é mostrada em movimento. O segredo da mágica foi contado. De várias maneiras o cineasta constrói e desconstrói seu filme. Torna isso público. Não está interessando em esconder, mas em gritar. Mise-en-abyme.

Gritar e ser ouvido. Cinema é isso, não é? Dizer algo e ter alguém para escutar. Não importa o que eu diga, eu algum momento, alguém vai me ouvir. O meu discurso, minha forma de olhar, de encarar o mundo, vai ser impresso na tela, esses elementos não indissociáveis. Voz da imagem. Quando digo minha, me refiro aos cineastas em geral, que sim, imprimem seus discursos nos filmes. Os discursos estão aí, vociferando pelo ar. Os discursos estão nos filmes, nas falas, nos livros, nos jornais, na vida. Podem ser meu, nosso (esse texto é um exemplo), podem ser seu, ou podem ser nossos – fruto de uma cultura em comum, do compartilhar social, mas também do jogo de forças presente nas relações eu-outro. Justamente por isso, devem ser examinados com o mesmo paradoxo que Vertov imprime neste seu filme: tomando a vida de improviso, mas montando-a, isto é, reelaborando-a ao som da sua própria voz.

O discurso é um ato político e o outro (espectador) precisa ouvir a voz do eu (cineasta) a partir do paradoxal acreditar-desacreditando, como sugere Jean-Louis Comolli (2008). Vertov ao evidenciar os elementos da mise-en-scène e da mise-en-abyme demonstra ao espectador que o filme é construído pela sua voz, que pode ser guiado da forma como eu cineasta penso, que o filme é feito de discursos, e que deve haver reflexão, pensamento crítico do espectador, sob pena de se deixar fascinar pela passividade automatizante das imagens máquinas.

Relações entre o homem e máquina são recorrentes em Um homem com uma câmera, a começar pelo nome do filme. Evidência da relação. Olho e objetiva. O olho dentro da objetiva, a objetiva refletida dentro do olho. Qual é superior, o homem ou a máquina? O olhar humano ou olhar maquínico?

Comolli (2008) diz que Vertov associa a “máquina ao seu desempenho e o homem à imperfeição, o filme supõe, senão um controle, algo como uma condução, um melhoramento, até mesmo uma realização do segundo pelo primeiro”. A voz de Vertov diz: o homem faz da máquina uma solução para suas limitações. A máquina faz o que o homem não consegue fazer, transcende os limites físicos do corpo humano. O substitui. Em determinado momento do filme, a máquina, representada pela câmera, toma vida. A câmera baila em cima do tripé. Imita desajeitada com suas três pernas de aço o homem bípede. Sugere ter a capacidade de seguir seu caminho, independente do homem, de construir seus próprios discursos. Mas aí aparece o homem vertoviano e grita mais um dos seus paradoxos: a máquina é superior às imagens mentais fugidias da memória humana, mas quem monta as seqüências e lhes dá novos sentidos continuam sendo homens que discursam. A máquina-homem. O homem querendo se esconder atrás da neutralidade maquínica.

Um homem com uma câmera, de Dziga Vertov, sem dúvida nenhuma, deixaria de se tornar referência. Referência em montagem, experimentação, reinvenção de uma linguagem clássica nascente. Grande obra cinematográfica. Mas acima de qualquer classificação: polifônica. Afinal suas vozes impressas nascem dos paradoxos vertovianos: a vida de improviso versus o controle das suas imagens; o desejo de descortinar a cegueira fílmica dos espectadores versus o desejo de reelaborá-la ao som da sua voz; a superioridade da máquina versus a discursividade do cineasta. Uma obra de polifonia inebriante.

Referência Bibliográfica

COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida – cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.


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O homem com a câmera (Dziga Vertov, 1929) foi exibido no Fazcine no dia 10 de Março.

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