21 de março de 2011

Foi isso que ela disse

Em torno de Jogo de Cena (Eduardo Coutinho, 2007)

Por João Daniell Ferreira de Oliveira e Rafael de Almeida


Não passa de cena, de caso pensado. Uma mulher sobe a escada, cumprimenta a equipe e o diretor, podemos vê-la sentar e a partir daí conta-nos um pouco de si. A conversa começa. O palco é o teatro. E a cena se repete. Mulheres desconhecidas, anônimas, rostos e corpos ordinários. Até que uma primeira atriz pode ser reconhecida. Ela não possuía um rosto qualquer. Então o jogo se completa, acaba de se revelar, deixando bem mais interessante um documentário que basicamente se vale de entrevistas.

Não que se quisesse encobrir o jogo, pelo contrário, o dispositivo, esse “jogo de escritura” que dá forma ao filme, é a primeira coisa que se dá a ver no filme. Um anúncio de jornal, convidando mulheres que se interessem em participar de um documentário. O diretor está ali, a voz aparece propositadamente, bem como a equipe. A câmera ajusta o foco e usa o zoom no meio da fala das personagens, de propósito, claro, para um filme que mescla as engrenagens da máquina à sua própria aparência. Que máquina é essa? A representação. Porque quer sejam atores ou não, no palco, não há quem não represente. E porque não representar a si mesmo? Mas e as atrizes? Elas estão ali como artifício de desestabilização do encantamento que é estar diante de uma tela, e não só por isso, seu lugar dá relevo à dúvida, já que são profissionais nisso que não é imitar, é interpretar. Há liberdade imaginativa, que só aprofunda a dúvida. Um blefe que só existe pelo que o cineasta e teórico francês Jean-Louis Comolli nomeia como incerteza essencial.



A obra comenta a si própria, quando a mesma história é contada mais de uma vez por pessoas diferentes; quando as atrizes comentam as próprias representações e as personagens que, apesar de reais, representam; deixando às claras seus artifícios. Quando Coutinho tem de encenar, fazendo as mesmas perguntas sempre, o jogo entre falso e verdadeiro, natural e artificial, ficção e realidade, espontaneidade e atuação, cria uma relação de tensão que acaba se tornando um convite para prestar mais atenção e desconfiar abertamente, sem constrangimento. Para ver além, porque o “fundo da imagem é sempre já uma imagem”, como diria Serge Daney. Um clima de teste é plenamente sentido pela atmosfera instaurada pelo documentário. Teste de atores mesmo. Como se estivessem ali para nos convencer de que é verdade, que aconteceu assim, de que “eu sou real”, que a minha dor existe de fato.

Em linhas gerais, sabemos que todas as histórias por mais inusitadas, engraçadas ou doloridas que pareçam, são plausíveis. São comuns, ordinárias, banais. Mas é na possibilidade da dor que nos sensibilizamos, já não importa muito quem diz. A dor nos é aceita.

De alguma forma por expor a própria fragilidade, e se valer das potências do falso, o documentário permite um acesso, pelo menos ao que parece, mais honesto à intimidade das pessoas que apresenta. As atrizes se testam, nós testamos as atrizes e somos testados por elas. Testamos as histórias e somos testados por elas. O filme é um teste, um jogo, e não se torna mesquinho por isso.

Compreende-se a representação como se colocar no lugar do outro, um direito e não usurpação. Modo de se ajuntar as experiências de vida do desconhecido. A representação não é apenas para ilusão, e ainda que seja, é legítima quando nos deparamos com a absoluta impossibilidade de ser o outro de fato. A surpresa não é descobrir que se está diante de um truque, é se deparar com a pergunta: Quando não é que não estamos representando?

Jogo de cena nos leva a experimentar a vida como se fosse um teatro. Metáfora já gasta, mas que torna excessivamente apropriado o título. E além de um título interessante, pode-se nomear assim, também, o artifício pensado para a possibilidade de prover de melhor contorno, relevo e textura a integralidade humana, inexoravelmente achatada por uma projeção.

Referências Bibliográficas
 
DANEY, Serge. A rampa (bis). In: A rampa: Cahiers du cinema, 1970-1982. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 229-234.

COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida – cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

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Jogo de Cena (Eduardo Coutinho, 2007) foi exibido no Fazcine no dia 03 de Março.

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